Por Que Não Aceitamos os Evangelhos
Apócrifos .
Por Augustus Nicodemus Lopes
Vamos iniciar perguntando o que é
um “evangelho”. O termo é a tradução da palavra grega euaggelion, “boas novas”,
usada a princípio para se referir ao conteúdo da mensagem de Jesus Cristo e dos
seus apóstolos. Posteriormente, a palavra veio se referir a um gênero literário
específico que nasceu com o Cristianismo no séc. I. Lembremos que o
Cristianismo, em termos culturais, ocasionou o surgimento, não somente de novas
músicas, mas também de gêneros literários como epístolas e evangelhos. Esse
novo gênero literário tinha algumas características distintas. Incluía obras
escritas entre o séc. I e o séc. IV por autores cristãos que giravam em torno da
pessoa de Cristo, sua obra e seus ensinamentos. Essas obras reivindicam autoria
apostólica ou de alguma outra personagem conhecida da tradição cristã.
Reivindicavam também que seu conteúdo remontava ao próprio Jesus. Existem
centenas de “evangelhos” conhecidos. Alguns são apenas mencionados na
literatura dos Pais da Igreja e deles não temos qualquer amostra do conteúdo.
Outros sobreviveram em fragmentos ou reproduzidos em parte em outras obras,
como, por exemplo:
• Evangelho dos Hebreus
• Evangelho dos Ebionitas (ou dos
Doze Apóstolos)
• Evangelho dos Egípcios
• Evangelho Desconhecido
• Evangelho de Pedro, para
mencionar alguns.
• Já outros, sobreviveram em
cópias completas ou quase, como:
• Os Evangelhos canônicos de
Mateus, de Marcos, Lucas e de João,
• Evangelho de Tomé
• Evangelho de Judas
• Evangelho de Nicodemus
• Proto-Evangelho de Tiago
• Evangelho de Tomé o Israelita
• Livro da Infância do Salvador
• História de José, o Carpinteiro
• Evangelho Árabe da Infância
• História de José e Asenate
• Evangelho Pseudo-Mateus da
Infância
• Descida de Cristo ao Inferno
• Evangelho de Bartolomeu
• Evangelho de Valentino, entre
outros.
Esses evangelhos são tradicionalmente
classificados em canônicos e apócrifos. Evangelhos Canônicos Nessa primeira
categoria se enquadram somente 4 evangelhos, os Sinóticos e João. Conforme a
tradição patrística e da Igreja em geral, eles foram escritos no séc. I pelos
apóstolos de Jesus Cristo ou alguém do círculo apostólico. Marcos teria sido o
primeiro a ser escrito, no início da década de 60, por João Marcos, que segundo
a tradição, registrou o testemunho ocular de Simão Pedro. Ele escreveu aos
cristãos de Roma para ajudá-los e fortalecê-los diante das perseguições. Mateus
teria sido escrito em meados da década de 60 por Mateus, o publicano apóstolo,
para evangelizar os judeus, a partir do seu testemunho ocular e usando talvez o
Evangelho de Marcos como base para a estrutura da narrativa. Lucas, escrito
pelo médico gentio Lucas, convertido ao Cristianismo, que foi companheiro de viagem
de Paulo e que frequentava o círculo apostólico, teria produzido esse evangelho
pelo final da década de 60, a partir de pesquisa que fez da tradição oral e
escrita que remontava aos próprios apóstolos. Seu objetivo, conforme declaração
no início da obra Lucas-Atos, era firmar na fé um nobre romano chamado Teófilo.
Já o Evangelho de João teria sido escrito pelo apóstolo amado por volta da
década de 70 ou 80, com aparentemente vários objetivos, entre eles combater o
crescimento do gnosticismo. João escreve a partir de seu testemunho ocular, a
partir do seu entendimento acerca da pessoa e da obra de Cristo. Esses 4
evangelhos cedo foram reconhecidos pela Igreja cristã nascente como inspirados
por Deus e autoritativos, como Escritura Sagrada, visto que seus autores foram
apóstolos, a quem Jesus havia prometido o Espírito Santo para os guiar em toda
a verdade (Mateus e João), ou alguém proximamente relacionado com eles (Lucas e
Marcos). Assim, eles aparecerem em listas importantes dos livros recebidos como
canônicos pela igreja, como o Cânon Muratório (170 d.C.), a lista de Eusébio de
Cesareia (260-340) e a lista de Atanásio (367). Os demais evangelhos, chamados
de apócrifos, implicitamente reconhecem a validade do critério canônico da
apostolicidade, ao reivindicar para si também a autoria apostólica e o
conhecimento de segredos que não foram revelados aos apóstolos. Evangelhos
Apócrifos O nome vem do grego apocryphon, “oculto”, “difícil de entender”.
Esses evangelhos são geralmente classificados em narrativas da infância de
Jesus, narrativas da vida e da paixão de Jesus, coleção de ditos de Jesus e
diálogos de Jesus. As narrativas da infância mais conhecida são o
Proto-Evangelho de Tiago, Evangelho de Tomé o Israelita, o Livro da Infância do
Salvador, a História de José, o Carpinteiro, o Evangelho Árabe da Infância, a
história de José e Asenate e o Evangelho Pseudo-Mateus da Infância. Entre as
narrativas da vida ou paixão de Cristo mais importantes se destacam o Evangelho
de Pedro, o Evangelho de Nicodemus, o Evangelho dos Nazarenos, o Evangelho dos
Hebreus, o Evangelho dos Ebionitas e o Evangelho de Gamaliel. Existem apenas
dois que se enquadram na categoria de coleção de ditos de Jesus, o Evangelho de
Tomé e o suposto documento Q (quelle, “fonte” em alemão), do qual não se tem
prova concreta da existência. Na categoria de diálogos de Jesus com outras
pessoas e revelações que ele fez em secreto mencionamos o Diálogo com o
Salvador e o Evangelho de Bartolomeu. Essas obras são chamadas de evangelhos
apócrifos por que não são considerados como obras genuínas, produzidas pelos
apóstolos ou pelos supostos autores. Além disso, pretendem transmitir um
conhecimento esotérico, oculto, além daquele conhecimento dos apóstolos. Em
grande parte, esses evangelhos foram escritos por autores gnósticos com o
propósito de difundirem as suas idéias no meio da igreja, usando para isso a
autoridade dos evangelhos canônicos e dos apóstolos. Alguns deles foram
encontrados século passado em Nag Hammadi, norte do Egito. O Proto-evangelho de
Tiago, por exemplo, escrito no século II, que descreve o nascimento e a
infância de Jesus e a juventude da Virgem Maria, é tipicamente uma tentativa de
satisfazer à curiosidade popular em torno de coisas não mencionadas nos
evangelhos canônicos. A teologia desse "evangelho" é a de um
docetismo popular: Jesus tem um corpo não sujeito às leis do espaço e do tempo.
O escrito não tem valor como fonte histórica sobre Jesus. Outro exemplo é o
Evangelho da Verdade. Esse não é um evangelho no sentido costumeiro da palavra;
é antes uma meditação, uma espécie de sermão sobre a redenção pelo conhecimento
(gnosis) de Deus. É atribuído ao gnóstico Valentino, que viveu em meados do
século II e por conseguinte, não ajuda em nada a pesquisa sobre o Jesus
histórico. Na mesma linha vai o Evangelho de Filipe, escrito antes de 350. É,
evidentemente, uma compilação de materiais mais antigos. O texto causou certo
sensacionalismo quando da sua publicação, porque sugere uma relação amorosa
entre Jesus e Maria Madalena. O Evangelho de Pedro – um fragmento que se
conservou – descreve o processo contra Jesus, sua execução e sua ressurreição.
Sua cristologia é a do docetismo: aquele que sofre e morre é apenas uma
aparição do verdadeiro Jesus, que é divino e por isso não pode sofrer e morrer.
Conforme esse evangelho, o corpo de Jesus se volatiliza na cruz antes de subir
ao céu. É preciso dizer que existem vários destes evangelhos apócrifos que
foram compostos por autores cristãos desconhecidos, não gnósticos, e que
aparentam refletir um tipo de cristianismo popular marginal. A maior parte
deles pretende suprir a falta de informação histórica nos evangelhos canônicos,
fornecendo detalhes sobre a infância de Jesus, diálogos dele com os apóstolos,
informações sobre Maria e demais personagens que aparecem nos evangelhos
tradicionais. Em alguns casos, parece que foram escritos para defender
doutrinas não apostólicas e que estavam começando a ganhar corpo dentro do
Cristianismo, como por exemplo, o conceito de que Maria é mãe de Deus e
medianeira. O Proto-Evangelho de Tiago, já do séc. III, explica porque Maria
foi a escolhida: por sua virgindade e santidade, e a defende como mãe de Deus e
medianeira. Alguns contém exemplos morais não recomendáveis. Por exemplo, o
Evangelho de Tomé, o Israelita, narra diversos episódios em que o menino Jesus
amaldiçoa e mata quem fica em seu caminho. Quase todos são recheados de
histórias lendárias e bobas, como o Evangelho de Nicodemus, que narra como José
de Arimatéia, Nicodemus e os guardas do sepulcro se tornaram testemunhas da
ressurreição de Jesus. É um livro cheio de lendas, fantasias e histórias
fantásticas. Os evangelhos apócrifos usaram diversas fontes em sua composição:
o Antigo Testamento, os próprios evangelhos canônicos e as cartas de Paulo.
Usaram também tradições cristãs extra-canônicas, de origem desconhecida e suas
próprias idéias e conceitos. A Atitude da Igreja para com os Evangelhos
Apócrifos No período pós-apostólico alguns desses Evangelhos chegaram a ser
recebidos por um tempo, como leitura proveitosa, como o Evangelho de Pedro, a
princípio recomendado por Serapião, bispo de Antioquia em 191 d.C., mas depois,
ele mesmo reconhece que ele tem elementos estranhos e o desrecomenda. Assim,
nenhum deles jamais foi reconhecido como autêntico e apostólico. Desde cedo a
Igreja Cristã rejeitou estas obras, pois não preenchiam o critério de
canonicidade: não foram escritas pelos apóstolos ou por alguém ligado a eles,
contradiziam a doutrina cristã, tinham exemplos e recomendações morais e éticas
pouco recomendáveis, e seus autores falsamente atribuíram a autoria aos
apóstolos, como por exemplo, o Evangelho de Tomé, de Pedro, de Bartolomeu, de
Filipe. Além do mais, suas histórias fantásticas acerca de Cristo claramente
revelavam seu caráter especulativo e supersticioso, ao contrário da sobriedade
e da seriedade dos evangelhos bíblicos. Não é de admirar, portanto, que eles
não aparecem em nenhuma das listas canônicas, onde os 4 evangelhos canônicos
aparecem. Aqui cabe-nos mencionar o testemunho de Eusébio em sua História
Eclesiástica, ao falar do Evangelho de Pedro, Tomé e Matias: "Nenhum
desses livros tem sido considerado digno de menção em qualquer obra de membros
de gerações sucessivas de homens da Igreja. A fraseologia deles difere daquela
dos apóstolos; e opinião e a tendência de seu conteúdo são muito dissonantes da
verdadeira ortodoxia e claramente mostram que são falsificações de heréticos.
Por essa razão, esse grupo de escritos não deve ser considerado entre os livros
classificados como não autênticos, mas deveriam ser totalmente rejeitados como
obras ímpias". Essa postura prevaleceu até a Reforma Protestante e o
período posterior chamado de ortodoxia protestante. Com a chegada do método
histórico-crítico, filho do Iluminismo e do racionalismo, passou-se a negar a
autoria apostólica e a inspiração divina dos Evangelhos canônicos. Os mesmos
passaram a ser vistos como produção da fé da Igreja, sem valor real para a
reconstrução do Jesus histórico. Dessa perspectiva, os evangelhos apócrifos
chegaram então a ser considerados como literatura tão válida como os canônicos
para nos dar informações sobre o Cristianismo nascente, embora não sobre o
Jesus histórico. O renascimento do interesse pelos evangelhos apócrifos, em
particular, os gnósticos. A partir da visão crítica defendida pelo liberalismo
teológico e pelo método histórico-crítico, em anos recentes os evangelhos
escritos pelos gnósticos passaram a receber grande atenção e importância nos
estudos neotestamentários das origens do Cristianismo e na chamada busca do
Jesus histórico. Vários fatos têm contribuído para isso. Primeiro, o surgimento
do Jesus Seminar nos Estados Unidos, considerada a 3ª. etapa da busca do Jesus
histórico iniciada pelos liberais do século XVIII. Um de seus membros mais
conhecidos, cujas obras têm sido traduzidas e publicadas no Brasil é John
Dominic Crossan. Em sua obra O Jesus Histórico: A vida de um camponês judeu do
mediterrâneo de 1991, ele emprega os apócrifos Evangelho de Pedro e
especialmente o Evangelho de Tomé para a reconstrução do Jesus histórico.
Segundo Crossan, essas duas obras são mais antigas que os Evangelhos canônicos
e contém informações importantes que não foram incluídas em Mateus, Marcos,
Lucas e João. Essa atitude de Crossan é característica dos demais membros do Jesus
Seminar e de muitos outros eruditos neotestamentários, que aceitam a autoridade
dos evangelhos apócrifos, especialmente os gnósticos, acima daquela dos
canônicos. Aqui podemos mencionar Elaine Pagels, cuja obra Os Evangelhos
Gnósticos, recentemente traduzida e publicada em português, vai nessa mesma
direção. Segundo, a publicidade e o sensacionalismo da grande mídia em torno da
descoberta e publicação dos textos dos evangelhos gnósticos, como o Evangelho
de Judas e de Tomé. A mídia tem difundido a teoria de que a Igreja cristã teria
ocultado e guarda até hoje outros evangelhos que remontam à época de Jesus e
que contradiriam e refutariam totalmente o Cristianismo tradicional e ortodoxo.
A veiculação pela mídia vai na mesma linha de propaganda e especulações
anticristãs voltadas mais diretamente contra a Igreja Católica Romana e que
acaba respingando nos protestantes, especialmente as igrejas históricas.
Em 2004 foi o Evangelho de Tomé.
Em 2006 foi a vez do Evangelho de Judas ganhar a capa de revistas populares
pretensamente científicas. A ignorância dos articulistas, o preconceito
anticristão, a busca do sensacionalismo, tudo isso contribuiu para que a
publicação do manuscrito copta do Evangelho de Judas recebesse uma atenção
muito maior do que a devida. Em 2007 foi a suposta sepultura de Jesus, uma
inscrição antiga contendo o nome de Tiago, irmão de Jesus, e outras
“descobertas” arqueológicas, fizeram a festa da mídia em anos mais recentes.
Não se deve pensar que essa atitude é um fenômeno atual. Desde os primórdios do
Cristianismo, escritores pagãos como Celso e Amiano Marcelino publicam material
atacando as Escrituras e o Cristianismo. Estou acostumado a assistir, anos a
fio, a exploração sensacionalista dessas descobertas. Quando da descoberta dos
Manuscritos do Mar Morto e das polêmicas e questões inclusive legais que
envolveram a tradução e a publicação dos primeiros rolos, a imprensa da época
especulava que os Manuscritos representariam o fim do Cristianismo, pois traria
informações que contradiriam completamente o Evangelho. Os anos se passaram e
verificou-se a precipitação da imprensa. Os rolos na verdade tiveram o efeito
contrário, confirmando a integridade e autenticidade do texto massorético do
Antigo Testamento. Terceiro, produções de Hollywood como “O Código da Vinci”,
“O Corpo”, “Estigmata”, “A última Ceia de Cristo” que se baseiam nesses
evangelhos gnósticos têm servido para difundi-los popularmente. O Evangelho de
Judas Examinemos mais de perto os dois evangelhos gnósticos que têm atraído recentemente
a atenção da academia e do público em geral, que são os evangelhos de Judas e
de Tomé. O Evangelho de Judas preservou-se em um manuscrito copta do século IV,
que supostamente conteria uma tradução do evangelho apócrifo grego de Judas,
cuja origem é estimada em meados do século II. A restauração e a tradução do
manuscrito copta foram anunciados em 6 de abril de 2006, pela National
Geographic Society em Washington. Não se trata da descoberta do Evangelho de
Judas. O mesmo já é um velho conhecido da Igreja cristã. Elaborado em meados do
século II, provavelmente na língua grega, era conhecido de Irineu, um dos pais
apostólicos. Na sua obra Contra as Heresias, Irineu o menciona explicitamente,
como sendo uma obra espúria produzida pelos gnósticos da seita dos Cainitas. No
século V o bispo Epifânio critica o Evangelho de Judas por tornar o traidor em
um feitor de boas obras. Não se trata também da descoberta de um manuscrito
antes desconhecido contendo essa obra. Acredita-se que o único manuscrito conhecido,
escrito em copta, foi descoberto em meados da década de 1950 e depois de uma
longa peregrinação nas mãos de colecionadores, bibliotecas, comerciantes de
antiguidades e peritos, chegou às mãos das autoridades. Sua existência foi
anunciada ao mundo em 2004. Trata-se de um códice com 25 páginas de papiro,
envoltas em couro, das 62 páginas do códice original. Somente essas 25 páginas
foram resgatadas pelos especialistas. A tradução que veio a lume em 2006 é
dessas páginas. O que é de fato novo é a tradução do texto desse apócrifo,
texto até então desconhecido. Contudo, o ponto central que a mídia tem
destacado com sensacionalismo, já era conhecido mediante as citações de Irineu
e Epifânio, ou seja, que esse evangelho procura reabilitar Judas da pecha de traidor,
transformando-o em vítima e herói. Várias matérias publicadas na mídia diziam
que Judas Iscariotes é o autor desse evangelho. Contudo, não existe prova
alguma disso. Segundo o relato dos quatro Evangelhos canônicos, Judas
suicidou-se após a traição. Como poderia ser o autor dessa obra? Irineu, no
século II, atribuía a autoria do evangelho de Judas aos Cainitas, uma seita
gnóstica. No códice descoberto e agora publicado, não consta somente o
evangelho atribuído a Judas, mas duas obras a mais: a “Carta a Filipe”
atribuída ao apóstolo Pedro e “Revelação de Jacó”, relacionado com o patriarca
hebreu. A presença do evangelho de Judas em meio a essas duas obras apócrifas é
mais uma prova da autoria espúria desse evangelho. Chega a ser irritante o
preconceito da mídia, que sempre veicula matérias que negam a autoria
tradicional dos Evangelhos canônicos, mas que rapidamente atribui a Judas
Iscariotes a autoria desse apócrifo. O manuscrito que agora foi traduzido não
data do século II, mas do século IV. Especula-se que é uma tradução para o
copta de uma obra mais antiga escrita em grego, que por sua vez dataria de
meados do século II. Daí a inferir a autoria de Judas Iscariotes, que morreu na
primeira parte do século I, vai uma grande distância. A seita dos Cainitas,
segundo Irineu em Contra as Heresias, era especialista em reabilitar
personagens bíblicas malignas, como Caim, os sodomita e Judas. A produção de um
evangelho reabilitando o traidor se encaixa perfeitamente no perfil da seita.
Ao final, pesando todos os fatos e filtrando o sensacionalismo e o preconceito
anticristão, a publicação do evangelho de Judas em nada contribuirá para nosso
conhecimento do Judas Iscariotes histórico e muito menos do Jesus histórico –
servirá apenas para nosso maior conhecimento das crenças gnósticas do século
II. Não representa qualquer questionamento sério do relato dos Evangelhos
canônicos, cuja autoria e autenticidade são muito mais bem atestadas, datam do
século I e receberam reconhecimento e aceitação universal pelos cristãos dos
primeiros séculos. O Evangelho de Tomé Esse Evangelho consiste numa coleção de
114 ditos que Jesus supostamente teria ditado a seu irmão gêmeo, Tomé. Ele faz
parte da livraria gnóstica descoberta em Nag Hammadi em meados do século
passado. O que temos é um manuscrito copta, tradução de uma versão em grego
desse Evangelho, datada do séc. III. Calcula-se que o evangelho original deve
ter sido escrito no séc. II. Não se trata de um evangelho no sentido usual do
termo, visto que não contém qualquer narrativa sobre o nascimento, ministério
ou paixão de Cristo. Trata-se de uma coleção de ditos de Jesus sem qualquer
moldura geográfica, temporal ou histórica que nos permita localizar quando,
onde e em que contexto Jesus os teria pronunciado. Calcula-se que foi escrito
na região da Síria, onde existem tradições sobre o apóstolo Tomé e onde se
sediava a seita dos encratitas, ascéticos que defendiam uma forma heterodoxa de
Cristianismo. Apesar de trazer muitas citações dos evangelhos canônicos, a
teologia do Evangelho de Tomé é abertamente gnóstica. Defende a salvação
através do conhecimento secreto e esotérico que Jesus revelou a seu discípulo
Tomé. Está eivado das dicotomias e dualismos característicos do pensamento
gnóstico mais evoluído do séc. II. Trata-se claramente de uma produção dos
mestres gnósticos, que se valeram dos evangelhos canônicos e do nome do
apóstolo Tomé para divulgar e espalhar suas crenças. Como reagimos a tudo isso?
Apesar de todos os esforços da mídia e dos liberais, não se consegue provar que
os evangelhos gnósticos foram escritos no primeiro século. Eles são produções
posteriores aos canônicos e que se valeram dos canônicos como fontes. O maior
argumento dos liberais para provar que o Evangelho de Tomé, contendo ditos de
Jesus, foi escrito no séc. I antes dos canônicos depende da existência do
suposto proto-Evangelho “Q”, a qual nunca foi provada. O testemunho dos pais
apostólicos é unânime em rejeitar esses evangelhos e atribuí-los a
falsificações feitas pelos gnósticos com o propósito de espalhar suas ideais e
ensinamentos. O conteúdo deles é distintamente diferente dos evangelhos
canônicos e da religião ensinada no Antigo Testamento. As reconstruções do
Jesus histórico feitas pelos que dão prioridades aos apócrifos, especialmente
os evangelhos gnósticos, deixam sem explicação o surgimento das tradições
escatológicas a respeito dele que hoje encontramos nos Evangelhos canônicos.
Nem mesmo a tese da “imaginação criativa da comunidade” defendida pela crítica
da forma pode explicar satisfatoriamente como um camponês judeu, com idéias e
estilo de vida de um filósofo cínico, praticando o curandeirismo entre o povo
simples, cheio de idéias gnósticas, acabou por ser transformado no Cristo que
temos nos Evangelhos em tão curto espaço de tempo, e ainda com as testemunhas
oculares dos eventos ainda vivas.
Fonte: [ O Tempora, O Mores! ]
.auto-estima
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